Sexta-feira, 30 de Janeiro de 2004
Há muito que vivo com duas Damas terriveis: a Saudade e a Solidão. São muito dificeis de aturar e de se conviver com elas. São tremendamente egoistas e não nos deixam em paz; não fogem, não se retiram. Por isso, resta-me um subterfúgio: tentar enganá-las: rio-me delas e tento fugir para dentro de mim; dentro de mim encontro um mar revolto mas tem ondas, tem cheiro a maresia, tem sol, chuva, vento, frio e calor; tem sal, tem vida, pulsa, sente e toca; e nesse mar revolto procuro uma ilha, uma ilha mesmo deserta onde me possa abandonar e nada mais sentir; olho em volta e continuo a ver esse mesmo mar mas a esperança de ver o nevoeiro dissipar, a esperança de ver que algum barco possa no meu cais aportar, a esperança de que sorrir de novo seja possível, esta, a esperança é a terceira dama com que consigo ainda viver!
Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2004
Silêncio é a palavra que habita, que palpita
Toda a música que faço.
É a cidade onde aportam os navios
Cheio de sons, de distância, de cansaço.
É esta rua onde despida a valentia
A cobardia se embriaga pelo aço.
É o sórdido cinema onde penetro
E encoberto me devolvo ao teu regaço.
É a luz que incendeia as minhas veias,
Os fantasmas que se soltam no olhar,
Que te acompanham nos lugares onde passeias,
É o porto onde me perco a respirar.
Silêncio são os gritos de mil gruas,
E o som eterno das barcaças
Que chiando navegam pelas ruas,
E dos rostos que se escondem nas vidraças.
Quem me dera poder conhecer
Esse silêncio que trazes em ti,
Quem me dera poder encontrar
O silêncio que trazes por mim.
Pelo silêncio se mata,
Por silêncio se morre,
Tens o meu sangue nas veias,
Será que é por mim que ele corre?
Somos dois estranhos
Perdidos na paz,
Em busca de silêncio
Sozinhos demais,
Somos dois momentos, X 2
Dois ventos cansados,
Em busca da memória
De tempos passados.
Silêncio é o rio que esconde
O odor de um prédio enegrecido,
O asfalto que me assalta quando paro,
Assomado por um corpo já vencido.
Silêncio são as luzes que se apagam
Pela noite, na aurora já despida,
E os homens e mulheres que na esquina
Trocam prazeres, virtudes, talvez Sida.
Silêncio é o branco do papel
E o negro pálido da mão,
É a sombra que se esvai feita poema,
Num grafitti que é gazela ou leão.
Silêncio são as escadas do metro
Onde poetas se mascaram de videntes,
Silêncio é o crack que circula
Entre as ruas eleitas confidentes.
Quem me dera poder conhecer
Esse silêncio que trazes em ti,
Quem me dera poder encontrar
O silêncio que trazes por mim.
Pelo silêncio se mata,
Por silêncio se morre,
Tens o meu sangue nas veias,
Será que é por mim que ele corre?
Refrão
Silêncio é este espaço que há em mim,
Onde me escondo para chorar e ser chorado,
É o pincel que se desfaz na tua boca,
Em qualquer doca do teu seio decotado.
Refrão
Silêncio...
(from: Pedro Abrunhosa/Pedro Abrunhosa)
enviado por Amora-silvestre
Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2004
Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.
Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor, Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento. Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço. Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei...
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer. Porque metade de mim é a platéia e a outra metade, a canção.
E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade...
também.
de Oswaldo Montenegro
(enviado por Raposa)
Sexta-feira, 23 de Janeiro de 2004
Senhor buscai em meu corpo teu desejo louco,
sou mulher não sou santa a ti abro meu manto
e se beberes na bruma da manhã desse prazer que não é pouco,
deitarei meu corpo em teu leito te causando espanto.
Em desalento, mesmo distante do legado em jeito,
faça de meu corpo tua moradia como febre em estadia,
lânguida, em minha pele com teus delírios me deito
e de belo agrado te aninho em meu pulsante peito.
Sou teu pecado não sejas homem orgulhoso,
na cama tuas vontades recebo como tua melhor criatura
e pecai...muito, por prazer não perdes a postura.
Faça da carne a música como escultura bêbada
e do poema um rio solto em direção ao revolto mar,
solte o leme da escuna, naufrague nas ondas desse lindo pecar.
(compilado e alterado dum poema original "Desejos" de Douglas Mondo)
enviado por M&M
"O quereres"
Onde queres revólver sou coqueiro,
onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo,
e onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta,
e onde voas bem alta eu sou o chão
E onde pisas no chão minha alma salta,
e ganha liberdade na amplidão
Onde queres família sou maluco,
e onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco,
e onde queres eunuco, garanhão
E onde queres o sim e o não, talvez,
onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão,
e onde queres cowboy eu sou chinês
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato eu sou o espírito,
e onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre decassílabo,
e onde buscas o anjo eu sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói,
e onde queres tortura, mansidão
Onde queres o lar, revolução,
e onde queres bandido eu sou o herói
Eu queria querer-te e amar o amor,
construírmos dulcíssima prisão
E encontrar a mais justa adequação,
tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés,
e vê só que cilada o amor me armou
E te quero e não queres como sou,
não te quero e não queres como és
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper vídeo,
e onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua eu sou o sol,
onde a pura natura, o inceticídeo
E onde queres mistério eu sou a luz,
onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro,
e onde queres coqueiro eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo te aprender o total do querer que há e do que não há em mim
from Caetano Veloso
(enviado por Raposa)
Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2004
Vaidade
Sonho que sou Poetisa eleita
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...E não sou nada!...
Florbela Espanca
(enviado por amora silvestre)
Sábado, 17 de Janeiro de 2004
A luz banhava
a angústia marchetada
de desvario e cedências,
os corpos unidos
em rubras incadescências...
Leve,
o ar filtra-se
nos cortinados claros,
nos tecidos avaros
de cor,
as flâmulas agitadas
ao sopro forte de desejos
de um estranho amor,
velas vogando à deriva
num mar calmo de agitados beijos.
de Jorge Arrimar
(enviado por BeijaFlor)
"Frémito Do Meu Corpo "
Frémito do meu corpo a procurar-te.
Febre das tuas mãos na minha pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel.
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e farte!
E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que me não amas...
E o meu coração que tu não sentes
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas.
de Florbela Espanca
(enviado por M&M)
Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2004
"Desejo"
Dá-me o que procuro
ou não almejo
eu quero-te lentamente
ou abruptamente
a escorregar pelas vertentes
do meu mais forte desejo...
Eu quero-te, artéria
e raiz
do naufrágio que fiz
de mim
no temporal do teu corpo
gritando que sim.
de Jorge Arrimar
(enviado por Raposa)
Terça-feira, 13 de Janeiro de 2004
Não tenho sono. Olho o tecto do quarto. Não está totalmente às escuras; uma claridade que vem do exterior permite ver os contornos das paredes e até alguns defeitos da pintura. É um quarto antigo numa pensão antiga numa rua antiga de uma cidade antiga. Sinto-me velho no meio de tanta idade.
Não tenho sono. E os olhos não me ardem. Coloco as mãos debaixo da minha cabeça e reparo que preciso de cortar o cabelo; está comprido e já faz um manto na zona do pescoço. Amanhã talvez o vá cortar.
Mas a garganta está seca. Estendo a mão para o lado e procuro a garrafa que lá havia deixado quando entrei no quarto para me deitar. Que horas seriam? Olhei para o lado à procura do meu relógio mas não estava em minha casa e ali não havia um na mesa de cabeceira; em vez da garrafa deito a mão ao telemóvel; olho o visor e com a luz do mesmo vejo que são 3 e meia da manhã.
E se eu lhe telefonasse agora? Ela estaria a dormir ou nos braços de outro homem? E, que me importa? Que tenho eu a ver com isso? Será ela presa de mim? Não pode fazer o que lhe der na real gana?
Não sei. A garganta pede-me líquido e desta vez a garrafa vem até à minha boca; elevo um pouco a cabeça e bebe uns golos de seguida daquele gin maldito que me vai destruindo o corpo e a alma.
Um leve calor desceu da garganta até à boca do estômago e senti uma espécie de conforto quente e doloroso. Nestas alturas não adianta abanar com a cabeça como se vê nos filmes; ainda é pior e a agonia pode surgir.
E se eu lhe telefonasse agora? Que horas são? Quatro menos vinte. Não, agora é estupidez da minha parte. Que diria ela? Mandar-me-ia àquela banda? Ou a sua voz doce e quente adoçaria o meu azedume? Só mesmo tentando. Não, não vou ligar.
O coração começa a bater com mais força e a cabeça começa também a latejar.
Que faço aqui? Não deveria ter ficado ao lado dela? Ou foi ela que me mandou embora? Estou confuso e já não sei pensar. Se calhar fui eu que vim sem me despedir; faço isso muitas vezes só para que ela não veja o meu estado.
Dói-me a alma. Como me pode doer a alma se não a tenho? Ou terei?
E se eu lhe telefonasse? Não consigo tomar uma decisão. Opto por mais uns goles de álcool que, pelo menos, me dão o conforto da dor peito abaixo.
É neste momento que sinto a agonia. Tenho de parar de beber. Como?
Vou-lhe telefonar. Não, não vou. Amanhã ligo e peço-lhe desculpa.
Mas, peço-lhe desculpa de quê? Que foi que eu fiz de errado?
Porque é que ela não me quer?
Porque me destrói assim mais do que a própria bebida?
Que horas são? Quatro e cinco. Os olhos começam a arder e pouso a garrafa; ainda a consegui pousar sem ela tombar no tapete como é costume; seria aborrecido mesmo naquele quarto antigo de uma pensão antiga de uma rua antiga de uma cidade antiga mas não tão velha como este farrapo velho em que me transformei.
Que roupas novas posso vestir?
Acho que vou conseguir dormir agora. A cabeça pesa-me e os olhos já se fecham sem que seja preciso forçar as pálpebras.
Que a noite me embale nestas trevas que me cercam e das quais não consigo fugir.
Amanhã telefono-lhe.
É, amanhã.
Amanhã preciso de comprar mais uma garrafa.